segunda-feira, 22 de junho de 2009

A Mesa Voadora

Do livro "A Mesa Voadora" de Luis Fernando Veríssimo, extraí um texto e uma frase:

Com champignon



Esta é uma história de amor, embora algum leitor possa protestar que instintos menos nobres a dominem. Envolve uma mulher, um homem e um sentimento entre os dois.
Se não quiserem chamá-lo de Amor, tanto faz. Uma rosa com outro nome teria o mesmo aroma etc, etc.
Encontraram-se em frente às sopas enlatadas. Ele examinava uma soupe a l'oignon, ela pegou distraidamente um creme de lagosta, bateu no braço dele e deixou cair a lata. Desculparam-se mutuamente; sorriram-se, e em pouco tempo estavam conversando. Sobre sopas, a princípio e — à medida que percorriam as prateleiras — sobre outros interesses comuns, sólidos e líquidos. Quando chegaram aos queijos, já tinham descoberto várias afinidades. A principal era um gosto pelo champignon que beirava a paixão. Os olhos dos dois brilharam quando descobriram isto. O ar se carregou de eletricidade quando seus olhos iluminados se encontraram e a conversa era sobre champignon. Se era Amor ou outra coisa, que importa?
Devo esclarecer que nem ele nem ela eram jovens. Estavam naquela idade crepuscular onde o espírito está disposto mas a carne já vacila, e o senso do ridículo intercepta o desejo para frustrar qualquer paixão além da mesa. Mas ainda havia, nos dois — como uma débil chama sob a caçarola, só o bastante para manter morno o molho, mas longe da ebulição — um saudável apetite pela vida. Ou, pelo menos, a morna memória de um apetite.
— Conheço uma receita de champignon... — disse ela, baixando os olhos como uma provocação.
Ele chegou perto para superar.
— Como são?
— Recheados.
— Mmmm.
— Só me faltam trufas para completar a receita comme ilfaut. Nunca encontro trufas...
Ele olhou para os lados antes de dizer no ouvido dela:
— Tenho trufas na minha casa. Da França.
— Não!
— Talvez um dia pudéssemos...
— Meus champignons recheados finalmente com trufas! É um sonho que tenho desde que...
— Desde que?
— Desde que meu marido morreu.
Ele engoliu em seco. Estavam agora na seção de bebidas.
— Seu marido tinha trufas?
— Não. Não é isso... — Ela parecia alvoroçada. Pegou uma garrafa de Grand Marnier para disfarçar seu embaraço. — É que comecei a cozinhar depois que meu marido faleceu. Para encher o tempo. O meu grande prato é o champignon recheado. Mas nunca fiz com trufas.
— Há quantos anos você...
— Sim?
— Está sem trufas?
Ela estava rubra como um rabanete por fora.
— Doze anos.
— Curioso. Nos cinco anos desde que minha esposa faleceu, recebo trufas regularmente, de um sobrinho que mora na França. Mas, fora um ou outro molho, que a minha cozinheira invariavelmente estraga, não sei o que fazer com as minhas trufas...
Alguma coisa pairou sobre o silêncio que se fez entre os dois naquele instante. Alguma coisa ainda disforme, a sugestão da sombra da possibilidade de uma ideia.
Não podiam ter certeza que daria certo. Às vezes está tudo conforme a receita — champignon dos grandes, o recheio de queijo, a manteiga e o creme para o molho, as trufas acrescentadas ao molho antes de gratinar — e não dá certo. Mas como saber, sem provar?
Esta história tem dois finais, à escolha do leitor. Doce ou amargo, como as sutis variações da cozinha oriental. Num final ele pergunta para ela "Você quer?" E ela faz que sim com a cabeça. Então ele pergunta: "Na minha casa ou na sua?" E ela responde: "Na minha, porque eu conheço a cozinha..." No outro final, os dois se despedem, nunca mais se vêem, e o espectro de uma possível sauce com trufas perfeitas para os champignons recheados fica vagando entre as prateleiras, por todos os tempos.


Tudo isso só pra dizer que tudo é uma escolha...

E a frase que ficou é do texto "Chineses", do mesmo livro:

É difícil saborear o mundo quando se está tentando transformá-lo.

Nenhum comentário: